LIVRO DO PROFESSOR

MARCO ANTÔNIO CAMPO DALL’ORTO

RIOCRICARÉ
E A HISTÓRIA CULTURAL DO SEU POVO

Agradecimentos

Sempre me senti inclinado a escrever sobre a história das vilas coloniais do Rio Cricaré (Kiri-Kerê: dorminhoco). No entanto, nunca consideraria que um tema tão corriqueiro em minhas aulas fosse exigir tanto de mim. Confesso que reli o que pude sobre a história de São Mateus e do Espírito Santo. Muitas vezes fui além, ao tentar elaborar conceitos novos e práticos para o entendimento do grande público.

A experiência de lecionar por dois anos em São Mateus foi de suma importância. Entendi definitivamente que contribuir para a construção de um conhecimento é um prazer inigualável. Por isso, sou grato pelas oportunidades que me foram concedidas, durante o biênio 2004/2005, nas várias instituições educacionais de São Mateus.

Trabalhando no centro, na periferia, em bairros distantes, como Guriri, e em escolas particulares, pude me aproximar do olhar que os mateenses têm da sua própria História. Eles me ensinaram o que nenhum livro poderia. Conviver com crianças, pré-adolescentes, jovens e adultos no período matutino, á tarde e na Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período noturno, me fez refinar as técnicas e métodos em sala de aula.

É por isso que só tenho a agradecer a todos que fizeram parte da minha vida profissional enquanto estive em São Mateus. Agradeço à Ritinha, da Escola Morada do Ribeirão, pelo carinho sincero; aos funcionários e professores de todas as escolas pelas quais passei, pela rica convivência.

Em Vitória, novamente, agradeço a minha querida mãe, pela paciência de ter lido todos os rascunhos e, com a visão de um leigo sobre os meandros mais técnicos da construção do conhecimento histórico, indicar o caminho das pedras para que o texto permanecesse agradável, simples e fácil.

Ao eterno amigo, que me acompanha desde o primeiro dia de aula do curso de História na UFES, André Luiz Bis Pirola, e sua visão de rapina para a crítica extremamente construtiva. Ao professor Gilvan, por ter demonstrado interesse e disposição para a orientação. E, por último, ao professor Estilaque, que, sem imaginar, se tornou há muito minha referência. A todos, muito obrigado!


Prefácio

Sobre a história de São Mateus, evidente que muito ainda deve ser desvendado, corrigido, apagado e, sobretudo, perdoado. É natural, quando não se possui uma sistematização em pesquisas. Do que temos, tentamos trazer o conhecimento para as ruas ─ meta ambiciosa. Permitir que a história de São Mateus pudesse ser lida por qualquer um é o mesmo que tentar popularizar Bach ou Nietzsche.

Sem pretensões ou arrogância de julgar o trabalho livre de críticas, tentamos transmitir, em poucas linhas, os aspectos básicos da historia da cidade de São Mateus de uma forma mais agradável, simples e fácil, para que alunos, o povo e os turistas possam ter a possibilidade de encontrar, rapidamente, o papel do povo mateense na História.

Tendo certa experiência com alunos na região, temos a certeza de que a maior dificuldade que esta obra encontrará é a de que ela seja simplesmente lida. Na verdade, esta é a meta principal: que ela seja lida!

Com este foco, tentamos mostrar que a história de São Mateus está relacionada com contextos muito maiores. Por isso, no início de todo capítulo há uma introdução elucidativa das condições capixabas, do Brasil ou do mundo. Nessas “introduções” tentamos informar que o processo histórico deve ser entendido como o conjunto de “verdades” que cada povo ou indivíduos carregavam em si e, conseqüentemente, o contato entre eles durante todo o período da colonização e do império.

Sempre tentando ao máximo a imparcialidade ideológica, expomos as visões de mundo de cada grupo social, para que o leitor compreenda, de uma forma mais ampla, como se deram os choques culturais existentes no passado, principalmente com relação a São Mateus. Assim, entender o passado de São Mateus, para nós, basicamente, é entender os tupis, os portugueses, os botocudos e os africanos. É conseguir se aproximar dos interesses e das angústias desses grupos sociais e do desenrolar desse contato, freqüentemente agressivo.

Tendo a certeza de que a educação e o turismo no município devem sistematizar o passado do seu povo, trazemos este ensaio didático-pedagógico para que o processo de autodescoberta dos mateenses, de si mesmos, se inicie de forma agradável, simples e fácil.

Nesse rol de prioridades, esperamos que as informações contidas sejam analisadas sem paixões étnicas, religiosas ou culturais para que, de uma vez por todas, a socialização da informação no Brasil possa gerar cidadãos livres e críticos, em busca de conceitos próprios, para que decisões acerca de seu futuro sejam efetivamente libertadoras.


Introdução

Escrever sempre é um grande desafio. Escrever sobre o passado de São Mateus é ainda mais desafiador. Percebi, evidentemente, que não poderia menosprezar nenhuma cultura que originou o povo mateense, muito menos falar sobre uma São Mateus de brancos europeus ou brasileiros somente.

Os confrontos culturais ocorridos no passado em São Mateus nos permitem encontrar a visão de mundo de cada grupo: tupi, botocudo, africano e europeu. O choque cultural foi a resultante de um projeto português e estes embates geraram dificuldades para todos. No entanto, “os atores históricos” tinham suas razões para agir como agiram e devemos ser cautelosos no julgamento do passado, julgamentos sempre modelarão preconceitos.

A linguagem informal foi propositalmente concebida numa tentativa de alcançar toda a população, incluindo alunos e turistas. As questões tratadas neste texto são indicações para um esclarecimento sobre as identidades que formam a identidade do povo mateense. Induzir uma convivência harmoniosa no dias atuais é uma tarefa complexa. Fornecer algum conhecimento é ajudar a preparar um cidadão consciente. Qual sociedade nós queremos para o futuro de nosso país? Claro que existem permanências tradicionais que ainda imperam, no entanto devemos começar já. Contornar as injustiças para que a exclusão através da pobreza e da violência deixe de ser conseqüência de todo esse processo notoriamente discriminatório.

A publicação é mais que um projeto pessoal, é uma contribuição. A busca por um futuro melhor não deve ser um sonho individual, uma utopia confinada em cérebros, deve ser o resultado das ações cotidianas de toda a sociedade. Dar sentido a vida de um cidadão é dar as armas da paz, dar o desprezo e a discriminação preconceituosa e excludente é dar e ser o crime.

Conhecer é mais do que possuir, é poder. É poder ajudar, é poder mudar, é poder produzir o bem no dia-a-dia. Onde há conhecimento verdadeiro, há discernimento luminoso e onde há discernimento, a possibilidade de progresso humano se amplia de forma fraternamente consistente. Sob os desígnios do hoje, sejamos a força da paz e da ajuda mútua constante por um mundo melhor e menos desigual amanhã!


Parte 1

Tupis, botocudos e portugueses:
as primeiras culturas do Cricaré


1.1 - Entendendo os americanos...

A maioria dos estudiosos acredita que há mais de 40 mil anos, seres humanos saíram do Norte da China e chegaram à América. Nessa época, o nível dos oceanos abaixou muitos metros e o gelo avançou muito entre um estreito que liga a Rússia ao Alasca, formando uma verdadeira ponte congelada em pleno oceano. Por isso, os filhos desses primeiros asiáticos exploradores podem ser considerados os primeiros americanos de verdade.

Há milhares de anos, esses primeiros americanos se espalharam com suas famílias por toda a América. Cada grupo foi se desenvolvendo em lugares bem distantes um do outro. Assim, para cada região diferente existia uma forma de viver diferente. Várias culturas se formaram. Nas terras congeladas ao norte do planeta surgiram os esquimós; na América Central surgiram grandes cidades governadas pelos maias; onde hoje é o Peru surgiu um grande império comandado pelo povo inca; nas florestas da América do Sul surgiram grandes nações de índios. Uma dessas nações nós chamamos Jê, e a outra, Tupi.

A família Tupi e a família Jê possuíam milhares de tribos, e cada uma possuía um nome diferente. Ao chegar ao Brasil, em 1500, os portugueses encontraram os tupis em Porto Seguro, e não os jês. Os tupis tinham expulsado os botocudos (Jê) para o Interior. Em 1500, os índios da região de São Mateus acabavam de sair de uma grande guerra. Somente dois séculos depois os botocudos conseguiram voltar para as terras ao norte do Espírito Santo, pois os tupis abandonaram essas terras. Podemos perceber, então, que a guerra fazia parte da vida do índio e que ele encarou com muita coragem o português, um inimigo desconhecido até então. A diferença toda é que os portugueses trouxeram armas poderosas que os índios não conseguiam vencer e doenças que suas ervas e raízes não podiam curar.

1.2 - São Mateus e os Primeiros Habitantes

Quais foram os primeiros habitantes das terras ao redor do Rio Cricaré? Quando os primeiros portugueses fundaram o povoado de São Mateus, em 1544, seus vizinhos eram os índios tupis. Quatorze anos depois, portugueses e tupis se enfrentaram em uma batalha sangrenta pela posse de uma terra ─ o Brasil ─ que os índios descobririam que não seria mais deles. Séculos mais tarde, os vizinhos foram outros, os botocudos. Estes conseguiram resistir até o século 20. Então, quais foram os primeiros habitantes de São Mateus? Começaremos com os tupis, pois eles habitavam as terras do Cricaré quando São Mateus surgiu. Mas como viviam os tupis daquela época?

Os índios tupis conseguiram desenvolver o plantio da mandioca há centenas de anos, e dela faziam vários alimentos. Plantar era uma vantagem, já que eles, com isso, não ficavam dependentes somente do que podiam caçar ou pescar. Por isso, só saíam de um lugar quando as plantas começavam a produzir menos, devido ao esgotamento dos nutrientes do solo. Eles eram seminômades, isto é, não ficavam em um lugar para sempre, mas também não mudavam de lugar rapidamente.

Na aldeia tupi, existiam grandes malocas, que eram barracões imensos de madeira, cobertos de palha, que eles usavam como casas coletivas. Todas as malocas eram construídas em torno de um grande pátio, onde aconteciam as festas, as danças, os jogos, as cerimônias religiosas, as reuniões para decidir algum assunto de interesse da tribo e muitas outras atividades. Nas malocas, as famílias viviam reunidas e dormiam em redes de algodão que as mulheres faziam. As fogueiras eram usadas para cozinhar os alimentos e à noite serviam para aquecer do frio, espantar insetos e animais da floresta.

O pintor francês Debret, mostra uma cena cotidiana dos tupis.

Os homens acordavam cedo para caçar em grupo. Na floresta, eles tinham técnicas para pegar vários animais. Faziam armadilhas, usavam zarabatanas enormes, tinham uma mira incrível com arco, para pegar animais em cima das árvores, e ainda imitavam o som dos bichos para que fossem atraídos e capturados. Nunca matavam por prazer ou raiva, sempre para a alimentação. Depois da caça, os homens voltavam para a aldeia com comida suficiente para toda a tribo, sem desperdício. Respeitavam a natureza, prova disso é que o Brasil era uma imensa floresta em 1500. Além do mais, possuíam animais de estimação como o macaco e o papagaio.

As mulheres eram muito trabalhadoras e respeitadas. Cuidavam da casa, das crianças, preparavam a caça e juntas cozinhavam para toda a tribo. Nas horas vagas faziam roupas e utensílios para o dia-a-dia. Entre os tupis, elas eram também encarregadas de cuidar do cultivo da roça de mandioca. O resto do dia era usado por todos para o lazer, para a conversa e para o descanso. Os índios não batiam nas crianças, que viviam livres pela aldeia, mas elas ‘morriam de medo’ da floresta e dos bichos que nela viviam.

Eles conheciam uma quantidade enorme de plantas e ervas para curar várias doenças. Muitas nós usamos até hoje. Todos respeitavam muito o cacique, pois ele era o chefe guerreiro, e também o pajé, que era o homem que fazia contato com o mundo dos espíritos. A religião era ligada às forças da natureza: acreditavam em um deus, que os tupis chamavam de Tupã. Na sociedade indígena não existia pobreza, pois, entre os índios, tudo era de uso da comunidade, isto é, todos eram donos e ninguém era dono sozinho.

Assim, os índios viviam repartindo tudo entre eles. Todos os meninos eram preparados para a guerra, pois sempre lutavam com as tribos inimigas. Na guerra dos índios eram usados o arco, a flecha e o tacape. Mesmo assim, o objetivo não era matar, mas capturar o inimigo. Em muitas tribos, os guerreiros inimigos capturados, que tinham demonstrado muita coragem na batalha, ficavam presos na aldeia dos vencedores, casavam e tinham filhos. Depois, eram mortos em um ritual religioso muito importante e seus corpos eram comidos, pois acreditavam que a coragem dos guerreiros capturados passaria para quem comesse um pedaço da carne do morto. Era uma honra para o prisioneiro ser comido nesse ritual, pois isso indicava que ele tinha honrado a valentia de seu povo e tinha sido considerado um grande guerreiro pelos próprios inimigos. Os mais valentes tinham sua história contada por séculos entre os seus parentes.

Podemos encontrar várias provas do passado dos tupis em São Mateus. De tempos em tempos são encontrados restos de vasos de cerâmica em locais diferentes da cidade, pois os tupis eram ótimos artesãos do barro. Também várias urnas funerárias já foram encontradas, e muitas revelaram que eles eram enterrados de cócoras dentro delas, algumas vezes com conchas ou objetos pessoais. Essas descobertas são importantíssimas, pois esclarece mais sobre a vida dos tupis antigos. Pesquisadores já conseguiram provar que alguns dos objetos tupis encontrados em São Mateus são de quase cinco mil anos atrás. Isso significa dizer que as pirâmides do Egito eram novinhas nessa época e as civilizações estavam ainda começando a se desenvolver.

No século 17, a região do Cricaré ficou livre para que os botocudos pudessem voltar para o litoral. Os tupis abandonaram a região de São Mateus, devido principalmente às doenças que os portugueses traziam e que contaminavam seus corpos despreparados para combater novas doenças, para as quais os índios não possuíam defesas imunológicas. No início da colonização portuguesa, essas novas doenças européias dizimaram milhares de índios tupis do Norte do Espírito Santo. Foi uma importante arma usada pelos portugueses contra os índios. Temos relatos de índios que receberam, como um presente dos portugueses, roupas contaminadas por doenças altamente contagiosas. Muitas tribos desapareceram em razão dessa contaminação. Ainda no século 17, percebendo que seu povo estava diminuindo, através desse novo tipo de guerra dos portugueses, os tupis que restaram preferiram deixar o Norte do Espírito Santo.

Com a região praticamente desabitada, os índios botocudos, que estavam no Interior, ocuparam as florestas do norte até o litoral. Os botocudos não tinham o hábito de plantar; alimentavam-se da coleta de frutos e vegetais, da caça de animais e da pesca de peixes. Eles eram nômades, isto é, não ficavam presos a um só lugar, estavam sempre se deslocando em busca de outros alimentos. Muitos botocudos não sabiam nadar direito, mas eram ótimos construtores de canoas. Eles viviam em acampamentos que rapidamente poderiam ser desmontados e remontados em outro local.

Os botocudos que habitaram as terras vizinhas de São Mateus eram guerreiros, e não tinham medo do europeu, pelo contrário, o europeu ‘morria de medo’ dos botocudos, que não aceitavam a presença de europeus e, por isso, faziam uma guerra diferente: ficavam espalhados nas matas, escondidos, e suas flechas matavam qualquer um que tentasse navegar pelos rios ou invadir suas florestas.

Durante séculos, os viajantes que precisavam passar pelo Norte do Espírito Santo usavam estratégias, ou até mesmo índios aculturados que, em um ataque, pudessem salvar as pessoas convencendo os botocudos. A história de Linhares, por exemplo, começou com um destacamento militar para proteção contra os índios, que logo foi completamente destruído por eles. Somente no século 19 um pequeno grupo de colonos conseguiu sobreviver aos botocudos e fundar Linhares.

Os botocudos usavam círculos de madeira nas orelhas e nos lábios, chamados de botoque, derivando daí o nome botocudos. Durante muitos séculos, a região Norte do Espírito Santo foi considerada área desconhecida pelos portugueses, pois ninguém tinha coragem de conhecer essas terras, já que os que tentavam não voltavam para dizer o que tinham conhecido. Como os botocudos do Rio Cricaré, os do Rio Doce consideravam o português um inimigo. Com vizinhos tão capazes, a existência de São Mateus e Conceição da Barra pode ser considerada, portanto, uma vitória.

Os índios botocudos eram tão temidos pelos portugueses que, no século 19, o imperador Dom Pedro II proibiu o massacre de índios em todo o Brasil. Porém, em virtude do instinto guerreiro e a resistência dos botocudos, ele abriu uma exceção: os botocudos do Norte do Espírito Santo deveriam ser dominados para a colonização dessas terras, e “o massacre dos botocudos” ele chamou de “guerra justa”.

Em São Mateus, podemos encontrar vários sítios arqueológicos. Na região de Pedra D’água é comum cavar e encontrar objetos indígenas de centenas de anos. Vários desses objetos antigos podem ser vistos no Museu de São Mateus, um ótimo lugar para se saber um pouco mais sobre a nossa História e admirar os objetos que faziam parte da vida dos índios e dos moradores antigos da cidade. Por isso, quanto mais investimento em pesquisas arqueológicas, mais artefatos antigos podem ser encontrados, descobrindo-se novos dados sobre os antigos habitantes da região do Cricaré.


1.3 - Entendendo os europeus...

Tudo começou antes de Cristo, no Império Romano. Os romanos dominaram a Península Ibérica e chamaram aquela província de Hispania. Construíram cidades e grandes fábricas de potes de barro que eram usados para transportarem líquidos e alimentos por todo o império. Com a invasão dos bárbaros e o fim do império, os romanos que viviam na Hispania se misturaram com esses bárbaros e, mais tarde, todos se tornaram cristãos. Em 711, os árabes já tinham conquistado quase toda a Península Ibérica. Os cristãos ficaram espremidos no Norte dessa península.

A Europa, no ano 1000, estava na Idade Média. Grandes reinos e seus senhores viviam em grandes castelos, com muitos servos ao redor plantando para que todos pudessem comer. A religião e a terra, na Idade Média, eram os principais motivos para disputas e guerras. Os árabes eram odiados pelos Ibéricos, simplesmente por que eles dominavam as terras deles e eram muçulmanos.

Logo os cristãos começaram a derrotar os árabes na Guerra de Reconquista. Senhores feudais, cavaleiros medievais e seus exércitos de servos uniram-se para expulsar, definitivamente, os árabes da Península. Em 1139, os árabes foram expulsos da região que se tornou Portugal. Mas os árabes ainda estavam no Sul da península. Tudo era uma questão de tempo. Em 1492, os árabes foram expulsos de toda a Península Ibérica, surgindo posteriormente a Espanha, ao lado de Portugal.

Podemos perceber que os portugueses tinham acabado de sair de uma guerra sangrenta quando chegaram ao Brasil em 1500. Os portugueses tinham muita experiência em guerras com inimigos grandiosos. Eles viam os povos que não eram cristãos como pecadores, e a guerra era a forma de vencer a ignorância desses povos e também espalhar as idéias cristãs pelos territórios que interessavam a eles. Essa é uma razão para a invasão e a cristianização do Brasil.

1.4 - São Mateus e os Primeiros Colonizadores

Quais foram os primeiros colonizadores de São Mateus? Qual a história deles até chegarem às margens do Rio Cricaré? Por que escolheram este rio?

Bom, já que São Mateus só não é mais antiga que Vila Velha e Vitória dentro do Espírito Santo, comentaremos neste capítulo, inicialmente, as descobertas marítimas portuguesas, para conseguirmos entender o motivo pelos quais os portugueses, no ano de 1544, escolheram o Vale do Rio Cricaré para viverem com suas famílias. Boa viagem!

Após a descoberta de um novo continente, ao oeste da Europa, em 1492, por Cristóvão Colombo, os europeus voltaram seus olhos para esse mundo desconhecido para eles ─ a América. Os portugueses, então, decidiram investir nestas novas terras como os espanhóis. Nesta disputa por territórios, foram firmados vários tratados entre portugueses e espanhóis.

Aos portugueses, ficou definido uma pequena parte do que hoje é o Brasil e aos espanhóis todo o resto das terras que nem se conhecia, pois não podiam calcular o tamanho real da América. Só para ter uma idéia, os portugueses chamaram a terra deles de “Ilha de Santa Cruz”. Só depois que perceberam que o território era grande demais para ser uma ilha e por isso foi escolhido outro nome: Brasil. O território recebeu este nome devido ao pau-brasil, uma árvore, na época, encontrada em grande quantidade no litoral. Ela era muito usada para tingir tecidos, pois do seu caule extraía-se um caldo vermelho, cor de brasa.

Mas, como eram as viagens dos primeiros exploradores ou colonizadores do Brasil? As viagens eram muito perigosas nos navios de madeira da época (caravela e nau). Não existiam motores, eles eram movidos pelo vento, que soprava nas velas. O Oceano Atlântico era praticamente desconhecido. Essas viagens, da Europa para a América (para chegar ao Brasil), demoravam meses.

Nesses navios, havia sempre crianças entre os marinheiros. É que alguns pais pobres, de Portugal, vendiam seus filhos para os comandantes dos navios que viriam para o Brasil. Eles faziam isso porque não tinham condições de sustentar os meninos, e o dinheiro ajudava a alimentar os outros irmãos por um bom tempo. Nessas viagens, as crianças recebiam funções diferentes: os pajens eram serviçais dos tripulantes e os grumetes eram usados para qualquer tipo de serviço a bordo. Como a viagem era muito arriscada e perigosa, todos passavam por muitas dificuldades. Os grumetes faziam de tudo: remendavam redes, limpavam o convés, faziam reparos nas velas do mastro, carregavam e traziam o que lhes pediam. Enfim, todo o tipo de trabalho pesado. Dormiam no próprio convés, como os marinheiros, sob o calor do dia e o frio da noite, durante toda a viagem. Muitos não agüentavam a viagem por causa do trabalho duro, dos acidentes e da fome, pois comiam biscoitos que apodreciam logo. A água também era pouca e muitas vezes também era podre e, por isso, muitos grumetes e pajens chegavam a desmaiar de desidratação, ou até morrer antes de terminar a viagem.

Em 1502, uma frota de navios portugueses, em expedição de exploração, passou pela foz do Rio Cricaré e mediu sua largura e sua profundidade, deixando uma estaca de pedra para marcar o local. Américo Vespúcio (por causa do nome dele o nosso continente chama-se América) estava nessa expedição que passou pelo Cricaré e por outros rios do Brasil

Somente em 23 de maio de 1535 o rico navegador português chamado Vasco Fernandes Coutinho chegou por aqui para começar a colonização portuguesa. Chamou o lugar de Capitania do Espírito Santo, hoje Vila Velha. Os índios, na praia, lançavam flechas e demonstravam não aceitar o desembarque dos portugueses, do navio Glória, na terra deles. Por isso, Vasco decidiu lançar tiros de canhões. Deu certo. Os índios não tinham como enfrentar as armas portuguesas e a única saída era abandonar aquele local.

Os portugueses começaram a construir as casas e preparar a terra para o cultivo da cana-de-açúcar (exportada para a Europa para a fabricação de açúcar). No entanto, os índios não desistiram de lutar e sempre atacavam a nova vila. Logo o medo começou a tomar conta dos pobres portugueses, que tinham sido convencidos a vir para uma terra cheia de florestas, animais perigosos, e índios, destinados a defender seu espaço a qualquer custo.

Esses portugueses viviam em casas de madeira e barro (estuque) e não possuíam móveis, somente objetos altamente importantes para eles, como utensílios domésticos e ferramentas. Eles eram quase todos analfabetos e viviam na miséria quase absoluta. Mas todos tinham um ideal: mudar de vida e construir um mundo novo em um lugar distante. E foi graças à coragem desses primeiros colonizadores capixabas, que enfrentaram enormes dificuldades, que podemos nos orgulhar de viver no Estado do Espírito Santo, com um povo que luta todos os dias em busca de uma vida melhor.

Porém, a História nos mostra um território com enormes dificuldades nos primeiros tempos da colonização portuguesa no Brasil. Com duas forças diferentes ─ de um lado os índios querendo defender suas terras dos poderosos invasores europeus, e do outro lado os portugueses prontos para colonizar e desenvolver uma região considerada por eles como atrasada ─ , não podemos dizer quem tinha razão, muito menos quem foi o errado na História. O problema é que, para eles, não havia espaço para conviverem no mesmo local, pois lutavam pela mesma terra e pensavam muito diferente um do outro. Cada um com sua visão de mundo.

Os portugueses acreditavam que os índios eram inferiores, por isso formavam grupos armados, que entravam nas florestas para escravizar índios (que eram usados nas lavouras dos portugueses). Isso deixava os silvícolas mais irritados ainda, pois entre os escravizados estavam suas mulheres e maridos, irmãs e irmãos, pais e mães, primos e primas, sobrinhas e sobrinhos, netos e netas.

Com esse clima de guerra, os índios passaram a atacar cada vez mais a Vila do Espírito Santo (Vila Velha). Eles conheciam muito bem todo o litoral do Espírito Santo e já eram acostumados a fazer guerra nas florestas. Foi assim que, em 1544, os índios se uniram e quase dizimaram os portugueses de Vila Velha, destruindo suas casas, os engenhos de açúcar e suas plantações. Após esse ataque, muitos dos colonos portugueses fugiram para a vila de Campos (atual cidade de Campos/RJ), enquanto outros foram morar na nova vila criada na ilha de Santo Antônio (Vitória), e outros foram para a região do Rio Cricaré, no Norte do Estado, fundando São Mateus e Conceição da Barra simultaneamente.

É incrível a coragem desses colonos, que não suportavam mais o ataque dos índios em Vila Velha, decidindo habitar uma região isolada e distante de tudo, no vale do Rio Cricaré. Mas o que importa é que eles conseguiram colonizar dois locais diferentes: um, no litoral, Conceição da Barra, e outro, sete léguas subindo o rio, São Mateus, formando, assim, as comunidades irmãs.

No ano da fundação de São Mateus, em 1544, não existiam estradas como hoje; também não havia cidade alguma por perto do Cricaré. A vida era de quase isolamento total do mundo. É óbvio supor, então, que, se Conceição da Barra e São Mateus estavam muito distantes de outros lugares habitados pelos portugueses, restavam às duas se unirem e conviverem harmoniosamente. Uma prova disso é que várias famílias antigas, portuguesas, existem nas duas vilas.

É fácil imaginar que os casamentos aconteciam com freqüência entre as famílias das duas cidades, aumentando, assim, através do parentesco entre seus habitantes, os laços emocionais entre as duas cidades.

Os navios de outros lugares passavam poucas vezes ao ano no Rio Cricaré. A vida era muito simples e quase sem nenhum conforto. Longe e isolados, barrenses e mateenses conseguiram permanecer na região bravamente. Mesmo com o ódio entre índios e portugueses, a falta de suprimentos e a dificuldade de produzir para vender para outras regiões, os primeiros habitantes mateenses foram bravos resistentes, que avançaram por todas as dificuldades, sempre deixando claro que eram grandes homens e mulheres que estavam dispostos a fazer tudo para que São Mateus prosperasse e se tornasse a cidade linda que é hoje.

Parte 2

Guerra e garra:
O desenvolvimento de São Mateus.

2.1 - Entendendo a colonização...

A região entre o Sul da Bahia e o Norte do Espírito Santo sempre foi habitada por várias tribos de índios. Em 1500, o comandante português Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, onde hoje é a cidade de Porto Seguro. Ele deu de cara com muitos índios da nação Tupi. Os índios receberam Cabral e seus homens muito bem. Os portugueses abasteceram os tonéis de água, carregaram os navios de comida, rezaram uma missa e partiram para a Índia. Mas essa “amizade” não demoraria muito. Logo os índios perceberam que os portugueses não vieram para visitar, e sim para ficar. Isso causou um problema novo para os índios, pois, se antes eles faziam guerra pela posse das terras, com a chegada dos portugueses eles teriam que lutar pela vida.

Em 1500, os portugueses, que tinham acabado de conquistar o lucrativo comércio de especiarias na Índia e na China, não deram muita bola para o Brasil, mas logo começaram a colonizar este grande território. Pense como um português da época: como colonizar um lugar gigantesco com apenas um punhado de portugueses? Pense! Esses portugueses teriam que abandonar a Europa para se enfiar em uma floresta desconhecida, sem nada ─ nada ─, além de animais e índios em pé de guerra. Ah, já íamos nos esquecendo dos franceses, ingleses e holandeses que queriam invadir o Brasil de qualquer jeito. Foi uma tarefa monstruosa para o pequeno reino de Portugal, que queria “construir” o Brasil e lucrar com ele. Como não achou metais preciosos no começo, foi obrigado a produzir cana-de-açúcar e vender na Europa. Com muita inteligência, portugueses expulsaram todos os invasores e piratas que rondavam a costa do Brasil. Exportaram toneladas de melaço de cana para a Europa. Porém, nem de longe podemos dizer que foi uma tarefa fácil. Assim, a guerra contra os índios não pode ser encarada por nós como justa. Mas, para os portugueses da época, era questão de vida ou morte.

2.2 - A Batalha do Cricaré

O famoso padre jesuíta José de Anchieta escreveu sobre essa batalha alguns anos depois do grande acontecimento. Um grande sociólogo do Brasil já disse que ela é a prova da incompetência portuguesa na colonização do Brasil. Porém, todos parecem não reconhecer o grande feito dos índios, que foram mais do que guerreiros, foram heróis. Essa histórica e importantíssima batalha parece estar esquecida por todos nós nos confins do século 16. É por isso que devemos nos perguntar: o que foi a Batalha do Cricaré? E por que ela aconteceu?

Bom, meses antes da famosa batalha, Vasco Fernandes Coutinho, donatário da Capitania do Espírito Santo, escreveu uma carta desesperada ao Governador Geral do Brasil, Mem de Sá (Salvador/BA), pedindo que este lhe enviasse navios e homens para enfrentar os índios, que já haviam destruído, novamente, quase toda a Vila Velha e a Vila de Vitória. Em 1558, Mem de Sá, então, enviou seis navios e mais de duzentos homens armados com arcabuzes (espingarda antiga), sob o comando de seu filho, Fernão de Sá. Eles partiram de Salvador, em direção à Vitória, para socorrer o donatário e seus colonos portugueses.

Antes, porém, pararam na Vila de Porto Seguro, para reabastecer e planejar melhor o ataque aos índios ao redor da Vila de Vitória. Foi lá que eles receberam a informação de que os índios estavam em grande número às margens do Rio Cricaré. Sabendo dessa informação valiosa, Fernão de Sá partiu imediatamente com seus homens. Chegando à foz do Cricaré, no dia 22 de maio de 1558, passou pela pequena vila portuguesa, Conceição da Barra, e entrou, com uma caravela, pelo rio, até onde o Rio Mariricu (mererike: fortaleza) encontra-se com o Cricaré (kiri-kerê: dorminhoco). Nesse local, a meio caminho de São Mateus, pelo Rio Cricaré, Fernão de Sá e seus homens puderam ver as fortificações dos índios.

Os índios usavam a tática dos mereriques para as guerras. Eram seis enormes muralhas circulares de toras, uma dentro da outra, que formavam um imenso forte. Os índios fizeram três desses fortes, interligados por grandes corredores protegidos. Eles, realmente, estavam preparados para a guerra contra os portugueses. Do navio, os portugueses chegaram, em pequenos barcos, às margens de areia fofa do rio. Em grande número, os portugueses conseguiram destruir o primeiro forte dos índios, que se reorganizaram nos outros dois que ainda restavam.

Os índios atacavam com centenas de flechas, matando muitos portugueses, e os portugueses atacavam com armas de fogo, matando muitos índios. Ao perceberem que as armas portuguesas estavam dificultando a vitória indígena, alguns índios foram enviados às tribos vizinhas para convocar mais guerreiros. Usando machados, os portugueses conseguiram destruir o segundo forte dos índios, fazendo com que estes lutassem mais bravamente pelo último forte. A desvantagem tecnológica das armas dos índios era evidente. Mas a vantagem numérica deles era bem maior, e mais guerreiros indígenas chegavam a cada minuto para a grande batalha.

Percebendo que vários soldados não possuíam mais pólvora e que a luta corporal entre os tacapes indígenas e as espadas portuguesas não conseguiria derrotar a imensidão de índios que chegavam a todo instante das florestas, Fernão de Sá ordenou que soldados fossem, nos pequenos barcos, ao navio, que esperava no meio do rio, para trazer mais munição. Assim, os índios, que estavam no único forte restante, passaram a ficar em grande vantagem contra os portugueses, já que a pólvora não chegava e os portugueses não eram tão numerosos como os índios.

Uma chuva de flechas cortava o céu em direção aos portugueses (que eram cada vez menos), na sua luta contra os índios (que eram cada vez mais). Com bravura, os índios foram derrotando todos os portugueses que restavam, e, com bravura maior ainda, os portugueses enfrentaram aquela situação desesperadora. Nos últimos instantes da batalha, Fernão de Sá tinha somente dez homens com ele para lutar. Percebendo a situação gravíssima, Fernão ordena que seus homens recuem, a nado, para o navio, que estava esperando no leito do Rio Cricaré.

Com centenas de flechas sobre suas cabeças, Fernão de Sá foi atingido por várias flechas, e morreu. Somente três dos seus homens conseguiram escapar ao ataque final indígena. Após os sobreviventes chegarem ao navio, a nado, os portugueses partiram, rapidamente, em busca da proteção do oceano, pois, assim, os índios não podiam alcançá-los. Passando pela foz do rio Cricaré, juntaram-se aos outros navios da frota e partiram, com extrema tristeza e ódio, rumo a Vitória, por terem perdido a batalha e o seu comandante (Fernão de Sá). Não sabemos exatamente o que aconteceu com o corpo de Fernão, sem dúvida um grande guerreiro português, que lutou bravamente até os últimos segundos de sua vida para defender o povo português nesta terra tão perigosa naquela época para eles.

A morte de Fernão de Sá foi notícia em toda a Europa, e o sentimento de vingança entre os portugueses, contra os índios, aumentou ainda mais. Por outro lado, os índios conseguiram uma importantíssima vitória contra seus inimigos portugueses, que estavam invadindo suas terras, matando e escravizando seus parentes mais amados. Essa grande batalha entre portugueses e índios aconteceu entre as atuais cidades de São Mateus e Conceição da Barra, em 1558.

Foi um marco na História da colonização portuguesa no Brasil e uma prova, para os portugueses daquela época, de que os nativos não eram tão inocentes e ignorantes como eles pensavam.


2.3 - Entendendo os brasileiros...

Em 313, o imperador romano Constantino proibiu que os cristãos fossem perseguidos e mortos, pois, a partir daquela data, não seriam mais acusados de heresia, isto é, de não seguirem a religião dos romanos. Assim, os cristãos puderam se estruturar e organizar a Igreja Católica. Os católicos tiveram grande responsabilidade na conversão dos bárbaros europeus ao Cristianismo.

Séculos mais tarde, toda a Europa era católica. Os diversos reinos da Idade Média eram praticamente independentes e totalmente unidos pela mesma religião cristã. A Igreja Católica, então, tornou-se muito poderosa, e a única religião da Europa, até 1517, quando um próprio monge católico protestou contra a prática de alguns católicos que vendiam o perdão dos pecados em troca de dinheiro e terras. Esse monge, chamado Martinho Lutero, acabou fundando uma outra religião cristã: o Luteranismo.

O papa Católico não aceitou perder fiéis, e perseguiu os protestantes com a mesma crueldade com que os romanos tinham perseguido os cristãos do Império Romano. Em meio a essa guerra religiosa entre católicos e protestantes, na Europa, o Brasil foi colonizado. Os jesuítas tinham uma missão: assegurar que a América fosse católica. Para isso, eles educavam os filhos de portugueses e catequizavam os índios.

Em um mundo intolerante, as religiões dos índios e dos africanos foram ridicularizadas e perseguidas por cristãos preconceituosos. O poder militar do reino de Portugal garantiu que a única religião do Brasil fosse a católica, enquanto os católicos garantiram que Portugal fosse o único a ter o direito de colonizar o Brasil.

Em virtude dessa união entre o rei e o papa, hoje, nós, brasileiros, possuímos o mesmo território, língua e a mesma cultura de um modo geral, com algumas diferenças regionais. O mais importante, porém, é que, cada vez mais, entendemos que devemos conviver com as diferenças e com a liberdade.

2.4 - No Tempo da Mandioca

Os Jesuítas foram religiosos católicos que vieram para o Brasil no início da colonização portuguesa com uma missão: catequizar os índios, isto é, transformar os índios em católicos. Mesmo que os índios não pedissem isso, os jesuítas passaram a formar aldeias onde os índios eram ensinados a deixarem de lado suas crenças tradicionais para acreditarem nas crenças dos jesuítas. Muitos índios só aceitavam ficar nessas aldeias jesuítas, pois eram os únicos lugares onde os eles não podiam ser capturados e escravizados pelos colonos portugueses.

Os jesuítas acreditavam que os índios precisavam mesmo dos ensinamentos cristãos. Na prática, a conversão dos índios ao catolicismo foi tarefa difícil. Muitos índios adotavam a doutrina cristã, mas, na maioria das vezes, só procuravam as aldeias jesuítas quando estavam em perigo. Os adultos, em sua maioria, não abandonavam as antigas tradições indígenas, e quando cansavam da insistência dos jesuítas abandonavam a aldeia e nunca mais voltavam. Percebendo o fracasso com os adultos, as crianças indígenas passaram a receber toda a atenção dos padres jesuítas. Elas eram educadas sob as regras e condutas da vida européia e, claro, da religião católica.

Com o passar do tempo, muitos novos aldeamentos jesuítas se formaram. Os jesuítas foram os maiores defensores dos índios durante a colonização do Brasil. Eles não aceitavam a brutalidade com que os portugueses costumavam tratar os índios. Várias vezes eles denunciavam os colonos por sua crueldade, e muitas vezes brigaram pelas vidas dos índios que estavam em suas aldeias e fora delas. Nas aldeias jesuítas existiam plantações e criações de animais para a alimentação de todos. A construção de igrejas e casas era uma forma de urbanizar a antiga floresta. Por isso, muitas cidades brasileiras de hoje, no início, eram aldeias jesuítas.

Para dar nomes portugueses aos locais no Brasil que tinham nomes indígenas, era comum batizar rios e vilas com nomes de santos católicos. Por isso, no dia 21 de setembro de 1596, dia do apóstolo São Mateus, o padre jesuíta José de Anchieta visitou a vila de portugueses do rio Cricaré e a batizou de Vila de São Mateus. Aproveitou para mudar também o nome do rio Cricaré para rio São Mateus, e da pequena vila do litoral, chamada Vila da Barra do Rio Cricaré, para Vila da Barra do Rio São Mateus (Conceição da Barra). Oficialmente, os nomes mudaram, mas o povo continua usando o antigo nome indígena do rio: cricaré.

Durante séculos, os jesuítas foram os únicos que se dedicaram à educação no Brasil. Na verdade, eles foram os primeiros professores dos brasileiros. Mesmo nas vilas, eram eles que educavam os filhos dos portugueses. Informações importantíssimas sobre a vida colonial brasileira podem ser encontradas nos livros, cartas e poemas dos jesuítas, que, com riqueza de detalhes, nos fazem viajar ao passado. Com o passar do tempo, os jesuítas tinham em seu controle muitas terras aonde os colonos não podiam entrar, e muitos índios que os portugueses não podiam escravizar. Temendo esse grande poder dos jesuítas, que, aliás, só aumentava, o ministro do rei de Portugal, chamado Marquês de Pombal, expulsou, em 1759, todos os jesuítas do Brasil e, claro, de São Mateus também.

Foi por isso que a Igreja Velha de São Mateus não foi concluída. Muitas outras construções ficaram inacabadas pelo Brasil, outras foram destruídas, e outras, abandonadas. Sobre a educação, poucos podiam pagar professores particulares para ensinar seus filhos a ler, escrever e contar. Foi um tempo muito difícil para o ensino no Brasil. É claro que, nessa época, a esmagadora maioria das crianças e dos adultos era totalmente analfabeta. Poucos nem sequer pensavam em estudos ou escolas. Na verdade, somente décadas depois da expulsão dos jesuítas começaram a aparecer algumas poucas escolas em algumas vilas do Brasil. Porém, é com tristeza que constatamos que até hoje o Brasil possui analfabetos.

Poucas décadas antes da expulsão dos jesuítas, porém, uma notícia se espalhou: alguns aventureiros, navegando pelo Rio Cricaré e pelo Rio Doce, descobriram algumas pedras preciosas no interior da Capitania do Espírito Santo. Rapidamente, muitas expedições partiram desses rios, em busca de tesouros. Muitos aventureiros enfrentavam muitas dificuldades atrás de ouro e diamantes. Antes da expulsão, muitos jesuítas também se aventuraram, com centenas de índios, pelos rios adentro, na esperança de conseguirem verbas para a grande missão à qual se dedicavam no Brasil.

Logo, todos queriam encontrar a região do interior da Capitania do Espírito Santo onde diziam conter muito ouro e diamantes, a chamada Serra das Esmeraldas. A noticia passou a ser conhecida por todos, inclusive na própria Europa. Percebendo a importância da descoberta, o rei de Portugal ordenou que fosse feito um relatório completo sobre todas as características do Rio Cricaré (largura, profundidade, localização). Dessa forma, a pequena Vila de São Mateus passou a ser conhecida e vigiada sob as ordens do rei de Portugal.

Com as descobertas de grandes minas de ouro e pedras preciosas no interior do Espírito Santo (onde hoje é Minas Gerais), foi proibido que pessoas do litoral navegassem em direção às Minas pelo Rio Cricaré e pelo Rio Doce, para evitar o contrabando de ouro e o ataque de piratas. Outra medida importante foi a divisão do Espírito Santo em dois: uma faixa de terra no litoral continuou sendo o Espírito Santo e o Interior passou a ser Minas Gerais.

O Espírito Santo foi usado como barreira para defender as minas dos piratas estrangeiros e contrabandistas brasileiros e portugueses. Por isso, os governantes apoiaram a ida de pessoas para São Mateus e o desenvolvimento da agricultura na pequena vila. Assim, ao redor de São Mateus, a mandioca começou a ser produzida em grande quantidade. A produção da farinha de mandioca deu tão certo que ela se tornou famosa em todo o Brasil, passando a ser vendida para todas as regiões como a melhor e mais saborosa farinha brasileira. Os navios chegavam carregados de produtos trazidos de outras regiões do Brasil e de outros países, e partiam com os porões carregados de farinha de mandioca. A farinha de São Mateus foi muito usada na região de Minas Gerais, no Rio de Janeiro, Salvador e até exportada para outros países do mundo.

A mandioca era um alimento que os portugueses conheceram através dos índios, que a plantavam e a usavam como alimento diário. Durante todo o período em que o Brasil ficou sendo uma colônia de Portugal, o alimento básico foi, praticamente, a mandioca e sua apreciada farinha.

Os portugueses usavam muitos dos conhecimentos dos índios para tentar ter uma vida menos cruel neste “novo mundo”, que era o Brasil para eles. Além dos alimentos, alguns costumes como fumar e tomar banho todo dia também foram assimilados pelos portugueses que viviam aqui. A própria língua dos índios tupi, foi a maneira mais usada de se comunicar no Brasil até 1782, quando o rei de Portugal proibiu definitivamente a comunicação dos colonos na língua dos índios e obrigou todos a falarem somente o português.

Neste mundo ainda em construção, onde as culturas se encontravam no dia-a-dia a todo instante, a pequena vila do rio Cricaré (ou São Mateus) começou a crescer e a prosperar. Os agricultores da “rainha mandioca” passaram a viver melhor do que os seus pais tinham vivido e, assim, São Mateus foi se tornando importante. As pedras que vinham dentro dos navios, para que eles não balançassem muito no oceano, eram usadas para construções como a Igreja de São Benedito, a Igreja Velha e o Porto do Rio Cricaré. Com esse novo comércio, muitas pessoas melhoraram de vida e algumas casas ficaram maiores e mais bonitas.

Com o passar do tempo, mais moradores chegavam, incentivados pelos governantes do Espírito Santo, do Brasil e de Portugal a aumentarem a população e a riqueza que surgia pela venda da farinha de mandioca. Como a mandioca era o alimento principal dos escravos, milhares de donos de escravos do Brasil eram obrigados a comprar grandes quantidades desse produto para alimentar seus trabalhadores.

O lucro com a venda da mandioca foi tão grande, que vários agricultores começaram a construir casarões de verão ao lado do porto. Era um local onde eles poderiam passar temporadas longe da fazenda e, ao mesmo tempo, ficar perto dos negócios que aconteciam com a chegada dos navios.

A farinha de mandioca foi tão importante para São Mateus que, em determinada época em que todo o Espírito Santo passava por muitas dificuldades, somente um local permanecia em crescimento e conseguindo grandes lucros: São Mateus. Em 1828, a província do Espírito Santo arrecadou 195 contos de réis em impostos, dos quais 120 foram da farinha mateense. Assim, São Mateus era a cidade mais rica de todo o Estado, e os lucros de seu comércio foi um alívio para todo o Espírito Santo!


Parte 3

Nativos e estrangeiros
brasileiros e africanos em São Mateus

3.1 - Entendendo os donos de escravos...

A escravidão existia a milhares de anos antes de portugueses chegarem ao Cricaré, em 1544, e ainda existe hoje em alguns países do mundo.

Para começar, no Império Romano, a escravidão era usada para diversos tipos de trabalho. Mas, na Roma antiga, não era a cor que determinava quem seria escravo; na maioria das vezes, era a guerra contra outros povos. Muitos habitantes dos povos conquistados pelos romanos eram feitos prisioneiros e escravos por eles. Como a Península Ibérica fazia parte de uma província dos antigos romanos, a escravidão não era desconhecida dos portugueses.

Assim, é mais fácil supor a razão pela qual os portugueses já usavam escravos em suas terras em Portugal, na África e na Ásia, no início da colonização do Brasil. Esses escravos eram africanos, capturados por seus inimigos da África, ou pelos próprios portugueses.

Na África, existiam guerras entre as tribos, como acontecia com os índios do Brasil. Os portugueses passaram a oferecer armas e munições para algumas dessas tribos africanas. Com essas armas, algumas tribos se tornaram mais poderosas que outras.

Nas guerras, então, as menos poderosas eram derrotadas e capturadas pelas tribos mais fortes. As tribos mais fortes, que tinham contato com os portugueses, levavam os prisioneiros de guerra e os vendiam aos portugueses em troca de mais armas e munições.

Da África, os portugueses traziam esses prisioneiros, como escravos, para o Brasil e para outras colônias. Na cabeça de todo europeu e de todo brasileiro, até o século 19, a escravidão era um hábito que eles conheciam desde criança e, por isso, se acostumaram com essa crueldade contra os negros.

Na mente dos brasileiros da época e, claro, dos mateenses, o trabalho forçado era o mesmo que ser pobre, ter menos prestígio social, ser menos inteligente que os outros. Então, restava a quem já fazia esse trabalho há séculos continuar fazendo, infelizmente.

3.2 - O Porto de São Mateus

Não podemos culpar os antepassados portugueses pela escravidão, pois a mentalidade da época era outra. Mesmo assim, não podemos achar que a escravidão era algo aceito por todos, tampouco justa. Ao contrário do que alguns dizem, o negro nunca aceitou a escravidão; afinal, quem aceitaria? Mas, por que trazer escravos da África, se aqui existiam tantos índios para trabalhar na lavoura dos portugueses? Bom, para começar, precisamos entender por que ter um índio como escravo era tão complicado para um português no início da colonização do Brasil.

1º - somente algumas tribos praticavam a agricultura; outras não a conheciam, ou não tinham paciência para esperar tanto para colher, já que existia muita comida nas florestas e nos rios. A agricultura não fazia parte da vida de muitos índios no Brasil, o que aumentava o descontentamento desses índios com os portugueses, que os obrigavam a fazer uma coisa que muitos deles nunca faziam.

2º - os índios caçavam ou plantavam para se alimentar, e os portugueses plantavam a cana-de-açúcar para vender na Europa. Isso piorava a situação, pois o índio não conseguia entender por que era obrigado a cuidar de uma plantação que ninguém nunca mais veria. Lembrando que não podemos dizer que era falta de inteligência do índio, já que eles não conheciam o comércio e nem o dinheiro ainda. Por isso, não poderiam entender, completamente, a exportação do melaço da cana-de-açúcar para a Europa, que seria refinado e se transformaria em açúcar.

3º - entre os índios, os homens eram caçadores e guerreiros. Mesmo nas tribos que faziam a agricultura, o papel do homem era caçar e defender a tribo. A agricultura era um trabalho das índias. Por causa disso, cuidar das plantações era visto por qualquer índio como uma humilhação. Seria como se um homem de nossa sociedade fosse obrigado a fazer alguma coisa que só as mulheres fazem: encaramos como uma humilhação, porque nossa sociedade recrimina. O mesmo acontecia com os índios que eram obrigados a trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar: eles se sentiam recriminados e humilhados.

4º - os índios caçavam até conseguirem o alimento necessário para alimentar a todos da aldeia. Dependendo da quantidade de pessoas, a caça podia durar horas seguidas. Após a caça, que nunca era um trabalho fácil, pelo contrário, dependia de muita habilidade e experiência, os índios ficavam na aldeia, junto com as famílias, os filhos, os parentes e amigos.

Por último, quando os índios eram escravizados, muitas vezes seus parentes e amigos organizavam ataques nas fazendas, onde eles se encontravam, para libertá-los. Outras vezes, os índios fugiam para as florestas e voltavam para a tribo. Para completar, o governo de Portugal não arrecadava nenhum centavo em impostos com os escravos índios, pois os donos de fazendas iam com seus capangas, por conta própria, às florestas e capturavam os índios que queriam. Diferente da importação de escravos negros da África, em que o governo conseguia fiscalizar a chegada dos navios e cobrar tarifas sobre a quantidade de negros que entravam no Brasil, dando lucro aos portugueses.

O Porto de São Mateus é um local muito importante para a História do Espírito Santo e do Brasil, pois, com o surgimento de São Mateus, em 1544, o Rio Cricaré passou a ser usado como a melhor forma de se chegar e sair de São Mateus. Afinal, não existiam rodovias, naquela época. Era pelo Cricaré que a maioria dos viajantes chegava e saía, e por onde os comerciantes compravam e vendiam seus produtos. O Rio Cricaré era “a estrada” para São Mateus, e o Porto era “a porta” de chegada, de saída e o local de recepções e despedidas.

Com a produção da farinha aumentando na Vila de São Mateus, a partir de 1750, o porto passou a ser mais usado pelos produtores para a venda de carregamentos cada vez maiores. Os comerciantes de São Mateus compravam cada vez mais produtos de outras regiões. Com o passar do tempo, os produtores de farinha foram lucrando tanto, que passaram a comprar mais terras, para aumentar a produção, e mais escravos para trabalhar nessas novas terras, aumentando, assim, o lucro e a riqueza deles e da Vila de São Mateus também.

Com a superprodução da farinha de mandioca, mais ou menos a partir de 1800, São Mateus se tornou parada obrigatória para os navios que vinham do Nordeste, do Rio de Janeiro, da Europa e de vários outros locais. Para os comandantes desses navios, parar no Espírito Santo era quase uma obrigação, pois, naquela época de poucas cidades e habitantes, os locais em desenvolvimento significavam mais lucros para esses comerciantes.

O Porto de São Mateus recebia uma quantidade muito grande de navios, que chegavam para comprar farinha ou para vender algum produto. Com esse comércio super ativo, muitas famílias de São Mateus enriqueceram e muitas outras saíram da miséria. Em 1828, São Mateus se tornou a vila mais rica da província do Espírito Santo.
Na verdade, São Mateus era mais rica do que todas as outras vilas e povoados, juntos, de todo o Espírito Santo. Inclusive a primeira vila (Vila Velha) e a capital (Vitória).

No começo do século 19, a Vila de São Mateus se tornou um lugar de ótimos lucros. Muitas fazendas plantavam mandioca e outras variedades de alimentos, muitas pessoas lucravam com o comércio do dia-a-dia e outras prestavam serviços para conseguirem algum dinheiro para viver. Mas foi o aumento da chegada de negros pelo porto que mudou mesmo as feições de São Mateus.

Com o número de fazendas e de pessoas aumentando, o comércio de escravos passou a aumentar muito pelo porto. Navios chegavam direto da África para vender negros em São Mateus. O porto de São Mateus era conhecido na Europa e na África como um lugar de parada dos navios negreiros e dos comerciantes de gente. Milhares de africanos entraram, como escravos, pelo porto, centenas ficaram na própria vila e outros milhares foram vendidos pelos comerciantes mateenses para outras regiões do Brasil.

Nesta época, a região de São Mateus tinha uma aproximação muito forte com a antiga Capitania de Porto Seguro do período colonial e província da Bahia do período imperial, hoje a parte sul do Estado da Bahia. São Mateus vendia e comprava muitos produtos dessa região ao norte.

Quando Dom Pedro I proclamou a Independência do Brasil em 07 de setembro de 1822, as províncias que não eram governadas por portugueses enviaram cartas de apoio a ele. A Bahia possuía muitos portugueses que não aceitaram perder o Brasil como colônia de Portugal e não apoiaram a decisão de D. Pedro I. O Espírito Santo apoiou, menos São Mateus, para não ficar contra seus parceiros comerciais baianos.

Na verdade, os políticos de São Mateus ficaram neutros e nada disseram nem a favor, nem contra. Esperaram com muita esperteza. D. Pedro I enviou então uma força militar, de 12 homens, a São Mateus para averiguar. Descobriram que não havia revolta e de lá saíram com a carta de apoio a Dom Pedro I e a Independência do Brasil.

Em 1850, uma lei imperial proibiu o tráfico de negros da África. Como no Brasil já existiam muitos negros, o comércio de escravos passou a funcionar somente dentro do país. Muitos navios passaram a vender escravos do Nordeste para o Sul, do Interior para as capitais e de uma capitania para a outra.

Assim, como o porto de São Mateus ficava bem no meio das rotas de comércio, muitos navios entravam no Cricaré para vender escravos, e aproveitavam para comprar muita farinha de mandioca, lucrando em dobro.

Os casarões do porto eram usados para a venda de negros. Eles eram acorrentados, surrados e vendidos como objetos de valor, como homens sem alma, como animais sem história. A crueldade do comércio de gente, que aconteceu com tanta força no porto de São Mateus, serve para mostrar quanto se foi injusto com o povo africano ─ uma forma de meditação de como ainda há pessoas que insistem em acreditar que existem pessoas melhores pelo que têm ou pela cor da pele.

Hoje, São Mateus é um das cidades capixabas que possuem mais descendentes de negros. E, como em todo o Brasil, de uma forma geral, são mais pobres. É por isso que devemos analisar o passado, a História, aprender com os erros dos brasileiros antigos e contribuir para que o nosso mundo seja um mundo de maior justiça, onde não haja preconceito e discriminação de nenhum tipo ou espécie.

Para os descendentes de escravos de São Mateus é importante conhecer o passado e ter a certeza de que, por séculos, a riqueza deste país foi construída também por braços negros. Agora, é com os mesmos braços que se deve exigir igualdade na educação, na saúde e na justiça. Se, antes, a liberdade do negro deveria ser negociada com seu dono, agora é através do voto que todos os descendentes de africanos e brasileiros da forte raça negra têm a oportunidade de exigir não só a liberdade, mas também a igualdade de condições.

3.3 - Entendendo os escravos...

Ao serem capturados em sua tribo, os africanos (homem ou mulher) eram separados de sua família para sempre. Eram vendidos para os portugueses que, nos porões de navios imundos, traziam centenas de africanos acorrentados, por meses, até o Brasil. Doenças, fome, sede eram causas constantes de mortes durante a travessia do Oceano Atlântico.

Em solo brasileiro, os “carregamentos” eram vendidos em diversos locais do Brasil. Em um lugar totalmente diferente, com uma língua estranha e com hábitos e costumes que não se pareciam em nada com a vida na África, muitos africanos desembarcavam e esperavam algum fazendeiro pagar o preço pela sua liberdade, em troca de um futuro de humilhação, opressão e dor. Logo a realidade iria mostrar como seria a vida, no Brasil, a partir daquele instante, para o negro escravizado.

Viviam trabalhando na lavoura, na plantação de cana-de-açúcar e de outros produtos agrícolas como a mandioca, que era usada também como alimento de escravos. O fato de viverem em um lugar totalmente estranho, obrigados a trabalhar em troca de nada, longe de tudo e de todos que conheciam, fazia com que alguns negros entrassem em depressão profunda e morressem ─ era o “banzo”.

Grande parte, porém, não morria, lutava como podia para não aceitar aquela situação. Mulheres estupradas pelos portugueses abortavam como forma de não aceitar que o filho fosse escravo, outros se suicidavam, muitos fugiam e voltavam para libertar o restante, e os mais corajosos chegavam a assassinar os senhores de várias formas diferentes.

É verdade que, por conhecerem a agricultura, os negros entendiam o que acontecia ao seu redor e dentro da fazenda de cana-de-açúcar ou de mandioca, mas não aceitavam nunca a posição em que estavam. São Mateus foi uma das regiões do Brasil onde mais surgiram quilombos ─ que eram comunidades distantes que vivam praticamente isoladas e protegidas da escravidão. Era a conquista da liberdade.

3.4 - A Terra dos Quilombos

Como forma de ilustrar melhor como foi a escravidão em São Mateus, para não sermos repetitivos falando exclusivamente da escravidão, veremos duas histórias reais, muito bem contadas por Maciel de Aguiar em seu livro “Os Últimos Zumbis”, que ilustram bem fatos das vidas de alguns escravos mateenses.

Com essas duas estórias poderemos entender melhor como era a relação de alguns senhores e seus escravos. Porém, não poderemos levar esses dois casos como as únicas formas em que escravos e senhores se relacionavam. Nem todos os senhores eram perversos, e nem todos os escravos eram guerreiros da abolição. Boa viagem!

Por volta do ano 1680, um fazendeiro de nome José Trancoso trouxe do continente África doze negros para serem escravos em sua nova fazenda. Os escravos trabalhavam muito e em troca só recebiam chibatadas dos capangas do senhor. Uma desses escravos era uma mocinha, “de olhos esfumaçantes”, que os outros negros chamavam de princesa.

O nome dela era Zacimba Gaba. Ela era princesa da nação africana de Cabinda, onde hoje fica o país Angola. Ao saber da estória de ter uma princesa em sua fazenda, o senhor resolveu chamar a mocinha. Ele a interrogou e proibiu sua saída da Casa Grande.

Ao longo de anos Zacimba apanhou do senhor no pelourinho do porto de São Mateus; as chibatas cortavam a carne fazendo-a gritar de dor. Os outros escravos da fazenda, que também eram de Angola, passaram a tramar um plano para libertar a princesa, que era violentada pelo senhor constantemente.

Zacimba, ao longo dos anos, foi amadurecendo, e com seu sangue nobre passou a liderar um movimento de libertação dos negros da fazenda de José Trancoso. Por meses, os negros pegaram uma cobra, conhecida como “preguiçosa”, cortavam a cabeça, torravam e moíam tudo, transformando num pó muito fino, que era dado ao senhor na comida, em doses muito pequenas. Certo dia, as dores do senhor começaram; os negros aguardavam o momento certo para a liberdade. Quando Zé Trancoso passou a “gritar feito um boi”, os capangas descobriram que seu patrão tinha sido envenenado. Sabendo que os capangas matariam muitos escravos, até descobrirem a verdade, os negros invadiram a casa matando todos, só poupando a família do senhor.

Zacimba comandou a fuga de seu povo, da fazenda, e andaram pelas matas até Riacho Doce, depois de Itaúnas, lá formando um quilombo, lugar esse onde todos os negros eram livres e trabalhavam na terra, dividindo toda a produção como irmãos. Vários negros de outros quilombos, ou fugidos dos capangas dos outros senhores de escravos, se refugiavam no quilombo da princesa Zacimba. No entanto, a princesa não estava satisfeita.

Ela sabia que o povo de sua terra estava sendo trazido, aos milhares, para ser escravizado no Brasil por brasileiros e portugueses, que achavam que o trabalho era humilhante e por isso tinham que escravizar os africanos, povo forte e guerreiro, que, infelizmente, não possuía as armas de fogo que os europeus possuíam. Foi aí que ela passou a atacar os navios que traziam escravos da África para o Brasil. Esses navios, que precisavam entrar no Cricaré para desembarcar, ficavam na costa esperando a maré aumentar para entrar no rio. Enquanto os navios esperavam na entrada do rio, a princesa Zacimba e seus guerreiros atacavam.

A princesa e outros guerreiros corajosos preparavam as canoas e esperavam anoitecer para o ataque mortal. Quando anoitecia, eles remavam na escuridão até chegarem aos navios negreiros. Os negros vinham trancados em porões, acorrentados, sem água e comida, nus e doentes. Muitos morriam na viagem e eram jogados no mar. Mas Zacimba tinha outros planos para os que chegavam vivos: a liberdade. Atacavam pelos lados, de surpresa, venciam as batalhas pegando os marinheiros desprevenidos, e libertavam os negros. Por dez anos libertaram centenas de negros. Os europeus já não ficavam perto do mar, pois temiam o ataque dos negros do quilombo do Riacho Doce.

A antiga princesa e escrava Zacimba Gaba cumpriu sua missão: ia aonde a opressão, a injustiça, a covardia dos brasileiros e dos europeus estivesse. Para ela, o seu povo deveria continuar livre, e não, viver como escravo, como propriedade de outro, apanhando, comendo mal, vivendo em outro país, longe das esposas e maridos, longe dos filhos e, principalmente, sem liberdade. Zacimba morreu invadindo um navio, cumprindo sua missão e seu ideal, mostrando para todos os negros de hoje que eles devem lutar pela valorização da sua cor, pelos seus direitos e, principalmente, pela igualdade entre os homens.

Uma outra triste estória, envolvendo escravos, ocorrida nos arredores de São Mateus, foi a da jovem Constança de Angola. Ela era escrava do Coronel Matheus Gomes da Cunha, irmão do Barão de Aimorés, que viveu, por volta de 1880, na Fazenda Cachoeiro. Sobre os filhos de escravas, muita crueldade aconteceu. Certo dia, a esposa do coronel ouviu o choro do menino novo de Constança. Ela detestava choro de criança e achava que o serviço atrasava muito com o pequeno tempo em que as escravas precisavam ter para cuidar dos meninos. Por isso, em um desses choros do filho de Constança, a senhora pegou o bebê e saiu andando com a escrava Constança gritando atrás dela, mesmo assim a sinhá pegou o bebê pelos pés e jogou dentro de uma fornalha em brasas. Constança, aos berros, gritava dizendo que ia matar a sinhá.

Os negros tentaram fazer uma rebelião e a esposa do coronel foi morar fora da fazenda; foi para a cidade. Constança ficou dias no tronco, sendo surrada por Zé Diabo, um capitão-do-mato, negro, ex-escravo, considerado pelos negros “traidor da raça”. Ele usava uma capa preta e tinha uma cara assustadora. Constança foi libertada por um grupo de negros fugidos, que estava nas matas, e ficou sabendo do horroroso episódio de crueldade da esposa do coronel Matheus Cunha. Fugitiva, ela passou a lutar contra as injustiças da escravidão. A esposa do coronel voltou para a Fazenda Cachoeiro, porque sua fama de perversa matadora de menino já tinha se espalhado por toda a região, e na cidade ela era recriminada como assassina.

Constança, porém, estava nas matas com vários outros escravos fugidos; eles eram contra a opressão e a maldade dos donos de escravos. Com os outros guerreiros nas matas de São Mateus, lutaram em várias fazendas para libertar escravos e acabar com os capitães-do-mato de cada uma delas. Certa vez, numa emboscada que os fazendeiros prepararam para Constança, ela sofreu um ferimento. Todos os outros negros fugiram e a deixaram no local. Por isso, Constança foi presa na Cadeia Velha (onde hoje é o museu). Porém, em um dia de procissão, na calada da noite, vários negros libertaram Constança da cadeia. O povo da cidade ficou em pânico, pelo perigo e pela “ousadia” dos negros.

Certa vez, à noite, num lugar às margens do Rio Cricaré, denominado Piaúna, Constança e os outros negros estavam preparando o “dicumê” (comida), quando das matas apareceu Zé Diabo, o capitão-do-mato. Ele estava com um chicote em uma mão e na outra tinha uma garrucha de dois tiros. Constança era ótima lutadora de capoeira angola e sempre andava com uma faca muito amolada. Constança balanceava de um jeito que Zé Diabo não tinha como acertá-la com a garrucha de dois tiros. Ele sabia que se errasse ela cortaria a garganta dele. Após muitos minutos naquela ginga mortal, já escurecendo, dentro da mata ouviu-se um tiro. Constança desviou do chumbo como raio e continuou na ginga de capoeira esperando para atacar Zé Diabo.

Ele sabia que se errasse o segundo tiro, já era. Muito tempo se passou, e Constança foi cansando. Foi quando se ouviu o segundo tiro. Quando foram ao local, Constança estava morta com o tiro e Zé Diabo com a garganta cortada. Como o prometido, Constança foi enterrada no local, junto com o filho, na Fazenda Cachoeiro.

Conclusão

Devemos entender que ser índio, negro ou branco não faz nenhuma diferença; ser homem ou mulher também não; ser baixo ou ser alto muito menos; gordo ou magro nada muda, e que as diferenças existem por que a beleza do ser humano está em ser diferente, pois se fôssemos todos iguais e pensássemos as mesmas coisas, não avançaríamos, pois todos teríamos as mesmas idéias. Você é diferente e gosta de ser respeitado por isso; então, respeite os outros pela diferença deles e todos transformaremos o mundo em um lugar de respeito, harmonia e paz.

Depende de nós, ao analisarmos as origens de São Mateus, perceber que muitas foram as injustiças contra os nativos indígenas, em prol de uma meta ou de um sonho português em construir o Brasil nos moldes europeus. Muito se avançou, e mais se perdeu em troca da destruição de todo um povo, de uma etnia que preferiu a harmonia com a natureza, em troca da tecnologia da destruição do próximo.

Os índios do Cricaré se foram, ou por doenças, assassinados, ou pelo casamento com o branco, pelos quais, nestes casos, seus filhos, geralmente, menosprezavam a cultura indígena, preferindo a vida dos brancos. A vida e os ensinamentos indígenas se foram. No entanto, as origens do povo mateense não podem ser entendidas sem levar em consideração os genes indígenas.

Nas origens de São Mateus encontramos os tupis e os botocudos, de arco e flechas; violentos ou amigáveis; destruidores ou parceiros dos primeiros colonizadores de São Mateus. Muito da cultura deles foi repassada para o nosso presente, e não conseguimos nos dar conta de que somos um pouco índio no dia-a-dia atual, pois usamos em diversas ocasiões sabedorias de suas culturas para vivermos melhor em nosso ambiente. Por isso, São Mateus é índia, orgulho de poucos!

Os africanos, que vieram por imposição habitar o Brasil, também foram dilacerados como povo; sua cultura foi obrigada a encontrar meios de ser repassada, para que, hoje, os filhos da África conheçam suas origens. Como esquecer de uma história tão presente nos dias de hoje? Como esquecer que o povo negro ainda sofre preconceito?

É preciso entender, de uma vez por todas, que toda a monstruosidade da escravidão foi uma prática usada por todos independente da cor: pelos europeus contra os negros, pelos brasileiros e também, pelos próprios negros contra negros, quando estes eram capatazes, capangas e até alguns que ao se alforriarem, compravam escravos!

Precisamos entender que, hoje, negros, brancos, índios, italianos, alemães, japoneses, ou qualquer outra etnia, não devem, nunca, reproduzir o preconceito contra o outro. De um passado que não deve, nunca, ser esquecido ou disfarçado, devemos lembrar sempre, e memorizar todas as formas injustas usadas como opressão e discriminação, para que os males de nossa sociedade sejam, hoje, reavaliados e analisados, e se, realmente, é esse o mundo que queremos que os historiadores de São Mateus do futuro encontrem: o preconceito, que ainda acontece.

Olhar para um dono de escravos do passado nos dá certo ar de juiz, e sempre os julgamos como pessoas que não eram avançadas, como nós, para entenderem que aquilo era errado. E nós, seremos julgados, no futuro, por sermos preconceituosos pela cor da pele, pela escolha religiosa ou pela opção sexual? Como seremos julgados no futuro?

Nas origens de São Mateus, o negro está na base da História dessa cidade. Não poderíamos pensar o que seria dela sem a força da cultura africana. Por isso, São Mateus é negra, orgulho de poucos!

Os corajosos colonos europeus, mesmo com todas as dificuldades, conseguiram permanecer em um lugar tão perigoso. Isolados, sem mantimentos ou remédios, sem comunicação com o mundo, eles progrediram e conseguiram desenvolver uma pequena praça, de colonos portugueses do ano de 1544, em uma cidade com mais de 100 mil habitantes em 2006.

Os europeus venceram a prova mais difícil que lhes foi dada pelo destino: a sobrevivência, quase impossível, em um local rodeado por uma floresta hostil e remota. Com sua obstinação, os portugueses foram bravos desbravadores de dificuldades, caçadores de esperança em busca da supremacia total.

Conseguiram, pela disposição de serem retos, pelo foco no progresso e pelo caráter ecumênico de sua visão de mundo, o apogeu. Entre a coragem e a persistência, os europeus construíram seu caminho, abrindo, com armas poderosas, sua passagem triunfal. A coroa de louros, hoje, se chama São Mateus, e o seu legado denomina-se História!

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